O ouvido é um meio de ligação importante entre o mundo que nos envolve e nossa vida interior. A partir dos sons que penetram no ouvido, o sentido da audição constrói uma imagem: uma imagem que situa a pessoa no espaço ambiente.
Um poeta desconhecido escreveu: “Tenho o tamanho daquilo que meus ouvidos podem ouvir; tenho a profundidade daquilo que meus olhos podem ver.” Seus ouvidos estavam abertos para o exterior e seus olhos voltados para o interior. Seus ouvidos se abriam para escutar o silêncio natural de seu ambiente e seus olhos viam o que seus ouvidos haviam escutado.
O ouvido já existe antes do olho. As crianças, dentro de sua mãe, já ouvem tudo o que é dito a sua volta, e o registram tão precisamente que algumas palavras captadas deixam traços profundos em sua consciência.
A audição é, na realidade, o começo de toda compreensão. Onde quer que uma mensagem seja transmitida, é preciso que haja ouvidos para ouvi-la, recebê-la e compreendê-la. É por isso que o profeta Isaías exclama: “Ouvi ó céus, presta atenção, ó terra, porque Iahweh está falando” (Isaías 1:2). No Salmo 78:1 “Povo meu, escuta minha lei, dá ouvido às palavras de minha boca” E João escreve no Apocalipse: “Quem tem ouvidos ouça o que o espírito diz às igrejas” (Apocalipse 2:7). Aqui, não se trata de escutar sem refletir, obedecendo contra suas próprias convicções, mas de prestar atenção com “ouvidos abertos”, receptivos, cheios de esperança, como uma criança a quem tudo maravilha.
AS PALAVRAS SÃO PORTADORAS DE ENERGIA
A audição está na base das relações cotidianas, mas ela é sobretudo necessária para ouvir a linguagem da voz do silêncio em seu próprio imo, no mais profundo do ser. Em um passado longínquo, os iniciados transmitiam sua mensagem à humanidade sob a forma de narrativas, que perduram nos mitos, nas lendas e nos contos. Os ouvintes captavam a mensagem na medida de sua capacidade, e tentavam comportar-se como os heróis dessas histórias nas quais acreditavam, a fim de alcançar essa nobreza e elevação.
As palavras são portadoras de energia. São formas por meio das quais a energia se manifesta. Pela palavra, a energia, que é informação, penetra na consciência e assim faz surgir imagens. A demagogia está baseada sobre esse princípio: os políticos projetam sua imagem mental sobre um público receptivo por meio de métodos cuidadosamente calculados; e o público reage de acordo com os ideais que escolhem, ou de acordo com aqueles ideais em que os políticos os fazem acreditar! Os dirigentes políticos podem assim tornar-se perigosos condutores de homens, incitando seus ouvintes a atos que todo ser bem intencionado jamais teria cometido individualmente.
A música também faz nascer imagens na consciência. Alguns põem-se a sonhar escutando frases melódicas de um trecho brilhantemente executado, enquanto outros ficam se mexendo no ritmo primitivo do jazz. E quem não se sente tocado pelas canções populares quase esquecidas?
“Pela visão, o homem se coloca no mundo; pelo ouvido, o mundo penetra nele”.
O médico e teósofo inglês Robert Fludd representa o ouvido como uma torre com duas entradas. À esquerda, a voz da origem; à direita, as sonoridades sedutoras da natureza terrestre (Tratactus secundus de naturae simia seu technica macrocosmi historia, 1618).
Freqüentemente, escutando uma conferência, surge uma imagem em nós. É uma imagem que retém nossa atenção e logo vai ganhando vida própria: então, nos perdemos em nossos pensamentos e vemos a imagem se ramificar em todos os tipos de associação de idéias. Então, nos esquecemos de ouvir porque nossos pensamentos e nosso poder de imaginação nos ocupam inteiramente. Nossos pensamentos seguem seu próprio caminho e nos arrastam em ondas sucessivas para longe do orador, que já não consegue mais transmitir nada, ou quase nada, a nossa consciência. A imagem que surgiu em primeiro lugar se fixa como idéia pré-estabelecida e já não pode ser modificada. Por outro lado, o desenvolvimento de uma profunda convicção interior é capaz de fazer cessar a obediência cega a qualquer autoridade exterior. Então, o eu escolhe e afirma suas preferências.
O mesmo acontece com a Palavra do Criador. “No princípio era o Verbo”. Uma corrente de força divina toca a consciência do homem e aí evoca imagens, representações da vida ideal, de imortalidade, de um mundo sublime onde não existe nem doença nem morte. São imagens de uma humanidade que já não é “um odor nauseabundo para as narinas de Deus” e que, sem luta, vai tomando seu lugar na criação e avançando “de magnificência em magnificência”. Mas ainda nessa hora é o “eu” quem escolhe, não escutando a palavra que lhe convém e se fechando a qualquer outra possibilidade. Será que isso é realmente “escutar” ou apenas “ouvir”? Não será apenas entrar por um ouvido e sair pelo outro? O materialista ainda pode entender isso?
O OLHO JÁ NÃO É O ESPELHO DA ALMA
A vida moderna está oferecendo cada vez mais elementos visuais. O olho já não é o espelho da alma, mas a lupa através da qual o “eu” deforma tudo. Dizem que a mídia (como a televisão e a internet) tira os olhos de seu ambiente e amplia a visão. Certamente isso é em parte verdade, mas paga-se o preço das funções sutis do ouvido, que fica surdo com os fundos sonoros, como a música tocada em algumas lojas e que é agradável e agressiva ao mesmo tempo. Há ruídos monótonos como o do ar condicionado, as surdas explosões dos motores a combustão, as trepidações do trem etc. Muitas pessoas tentam se isolar do mundo com um walkman: ora, sabemos que este hábito traz uma séria degradação do ouvido, desde a juventude.
A AUDIÇÃO COMO FORMA DE RESPEITO
O silêncio virou uma coisa rara. Escutar é uma forma de respeito. É escutando que aprendemos a falar, em nossos primeiros anos de vida. As crianças registram o vocabulário, as entonações, a pronúncia de sua língua materna escutando as pessoas de sua casa. Muitas sociedades assinam embaixo do princípio pedagógico segundo o qual “quem não quiser ouvir sofrerá as conseqüências”. Em um passado recente, supunha-se que as crianças deveriam obedecer cegamente a seus pais e educadores – e ainda se pensa assim em inúmeros países.
O provérbio: “Quem não quiser ouvir sofrerá as conseqüências” não se aplica apenas à educação das crianças. Quem quiser adquirir a compreensão das características e do objetivo da Criação e das criaturas terá de passar também pelo caminho das duras experiências na matéria. No início, nossos olhos ainda não estão abertos (ou estão semi-abertos). Mas, depois de muitas experiências, aprendemos a perceber a voz interior e nossa cegueira vai acabando: começamos a compreender o processo da renovação da vida. A lei de causa e efeito terá então acabado de nos ensinar a escutar em nosso coração a voz do silêncio.
Quem escuta esta voz, quem se liga a esta voz, sente que sua compreensão vai amadurecendo e se renovando cada vez mais. Esta pessoa assinará embaixo das palavras de Jacob Boehme: “Quem tem ouvidos para ouvir, vê!”
Escuto para Viver. Escuto, não importa o quê, A vida me sussurra. Escuto. Logo, posso doar!
FONTE: Revista Pentagrama