Como cuidar? Antes de tudo, através da escuta, que é o primeiro mandamento; Shema Israel, Escuta Israel*. Antes de falar de amor é preciso falar de escuta.

Porque a crise que testemunhamos a nossa volta é a do ab-surdo, de surdez, de falta de escuta.Para os antigos Terapeutas, há três órgãos no corpo do homem de uma escuta inclusiva, que acolhe a inteireza do Instante. Esses órgãos são sempre pares e têm a forma de sementes: os pés, os rins e as orelhas.

Os pés escutam a terra, nossa mãe, a Pachamama, segundo a tradição andina.

Trata-se de abrir a escuta para o infra-humano, os reinos básicos que nos precedem e que encarnamos: o mineral, o vegetal e o animal.

Lembro-me de quando, há alguns anos, estive em Pucket, na Tailândia, esse local que foi arrasado pelo tsunami. Estava recebendo uma massagem ao ar livre, num local próximo à praia, quando o solo começou a tremer, como se estivesse sendo golpeado. Olhei para a frente e me deparei com um elefante, que caminhava pela praia. É quase certo que aquela massagista, como todas as suas colegas e habitantes daquela região foram tragados pela grande onda.

Entretanto, aquele elefante segue existindo, pois ele escuta a terra…

É interessante constatar que alguns antropólogos, após essa grande tragédia, que pesquisavam uma comunidade tribal numa região da Índia, também assolada pelo tsunami, lá voltaram para saberem se havia sobreviventes. Perplexos, constataram que todos os habitantes daquela comunidade tinham sobrevivido. Porque eles escutam os elefantes, as formigas, os pássaros. Eles escutam os sussurros da terra…

Através da escuta, é possível responder de forma consciente e responsável ao inesperado que nos chega. Não escutar a terra é o que nos torna tão frágeis diante das ondas inesperadas da crise, que nos submergem.

Os rins escutam o sangue, o interior de nós mesmos. “ Cinja teus rins!”, afirma a mensagem bíblica. A função dos rins é filtrar o sangue. Às vezes os pensamentos e sentimentos nos envenenam, afetando nossos rins. Esta é a escuta íntima do humano, de tudo que transcorre em nossas almas, para a qual estamos geralmente desatentos.

As orelhas, enfim, escutam o Céu, o grande Pai, o supra-humano.

Pelas orelhas, na escuta do Logos estamos em contato com a dimensão da Divindade e da Luz.

Na iconografia budista, o Buda é representado com grandes orelhas, indicando sua conexão com o Logos, a Inteligência Criadora. E ainda na escuta do Logos, para os orientais, há a simbólica de sabedoria do burro, com suas grandes orelhas, como um arquétipo crístico – por sua mansidão e por carregar o fardo humano. Há um livro de um junguiano com esse título: Burro, arquétipo de Cristo. Esse animal está presente na cena do presépio cristão e leva no lombo a pessoa de Cristo quando de sua entrada em Jerusalém na manhã de Páscoa, segundo a tradição cristã.

 

O terapeuta é alguém habilitado na grande arte da escuta, da terra e do céu, o coração do humano, síntese viva de todos os Reinos que nos habitam. O reino mineral encontra-se em nossos ossos e dentes; o reino vegetal na flora intestinal, no sistema vegetativo, na raiz dos cabelos, nas plantas dos pés; o reino animal na libido, nos instintos.

As vezes o que está doente em nós não é o humano, é o infra-humano. Antes de sermos bons seres humanos, precisamos ser bons animais – o que Freud bem observou – , bons vegetais, bons minerais. É por isso que , às vezes, um cristal pode curar o cristal partido em nós; o floral pode ser agente de cura para a nossa planta, a nossa flor, a nossa rosa ferida. Um animal, um gato, um cachorrinho, um cavalo pode exercer um ofício terapêutico, auxiliando a pessoa a restabelecer uma ponte de sensibilidade, uma conexão curativa.

Há, também, o trans-humano, o horizonte vasto e essencial do transpessoal. Porque , às vezes, o que está ferido em nós é uma estrela, um cosmo no exílio. O que sofre em nós, pode ser um anjo esquecido. Assim, o infra-humano e infrapessoal, o trans-humano e o trans-pessoal se encontram no ser humano, na sua alma e no seu coração integrados, através do resgate da consciência de inteireza.

 

Roberto Crema

Shemá Yisrael (em hebraico שמע ישראל; “Ouça Israel”) são as duas primeiras palavras da seção da Torá que constitui a profissão de fé central do monoteísmo judaico (Devarim / Deuteronómio 6:4-9) no qual se diz שמע ישראל י-ה-ו-ה אלקינו י-ה-ו-ה אחד / Shemá Yisrael Ad-nai Elokêinu Ad-nai Echad

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