Acima: Harpista tocando no banquete de Rekmire, vizir e governador de Tebas (1504-1450 a. C.). Detalhe de pintura em tumba da necrópole de Sheikh Abd el-Qurna, margem ocidental do Nilo próximo a Luxor, Egito.

A música engendra certos estados de alma, e desde tempos imemoriais os homens a praticam conscientemente com esta finalidade. Em ocasiões felizes como casamentos, celebrações de vitórias, ela torna os participantes alegres e felizes e os convida a dançar. Mas a música representa ainda muito mais que isso.

 

Estudos sérios demonstram que as pessoas na Idade Média eram menos depressivas porque as numerosas festas e quermesses as mantinham unidas e bem orientadas no seio da comunidade. Em funerais, as famílias davam seu adeus aos desaparecidos ao som de músicas graves e solenes, numa atmosfera que incitava, querendo-se ou não, ao exame de consciência e à reflexão. Em tempos de guerra, tanto nas tribos primitivas quanto entre os povos mais civilizados, o rufar dos tambores fazia calar o medo dos soldados e os insensibilizava. A música militar dava-lhes a impressão de invulnerabilidade e eles marchavam decididamente e seguros de si ao encontro do inimigo. Sabe-se que na Segunda Guerra Mundial os regimentos escoceses obtiveram grande sucesso pelo fato de que em meio ao horror dos campos de batalha os tocadores de gaita de foles não paravam de tocar suas canções, fatigando os combatentes até a medula dos ossos. Isso tinha um duplo efeito: os inimigos fugiam a toda pressa enquanto os escoceses eram cada vez mais estimulados.

A indústria cinematográfica faz uso intenso da música, utilizando toda a gama de efeitos sonoros de vanguarda, influindo sobre a vida sentimental do público. Quando a sombra de uma mão toca a fechadura de uma porta tendo por trás dela uma pessoa que nada suspeita, é principalmente a música que mexe com os nervos dos espectadores e faz parar sua respiração quando o invasor abre a porta com um único golpe brusco. Nas cenas de perseguição, o ritmo cada vez mais rápido da música acelera os batimentos cardíacos do público. No desfecho, uma música suave e arrebatadora envolve os amantes, que caem um nos braços do outro.

O sábio de Siracusa
Na tradição ocidental, Pitágoras foi um dos primeiros a empreender a pesquisa sistemática da influência da música sobre a psique humana. A história conta que ele começou suas pesquisas quando passou ao lado de uma forja onde vários ferreiros fabricavam uma espada, e para tanto cada um dava, alternadamente, um golpe de martelo. Ele se perguntou como era possível que cada martelo produzisse um tom mais ou menos alto e com timbre diferente. Então ele fez experiências com um dispositivo que consistia de cordas esticadas por pesos desiguais e descobriu que havia uma relação entre a altura dos sons e a diferença dos pesos, e que certos sons simultaneamente se harmonizavam e outros não. A doutrina pitagórica da harmonia é a ciência das proporções entre os intervalos dos sons bem como da seqüência de sons ordenados no tempo segundo linhas rítmicas e melódicas. Ele elaborou um sistema de princípios universais que os pitagóricos também reconheciam na ordenação e na construção do macrocosmo, do cosmo e do microcosmo.

Segundo a sabedoria de seus Mistérios, eles consideravam que o cosmo solar não era uma máquina, algo mecânico sem alma, mas um “logos” em manifestação. Sabe-se que por trás das formas visíveis se encontra ativa uma força divina primordial, vivente e pulsante. Assim como os antigos sábios hindus ouviam, no coração mesmo da criação, o som fundamental “AUM” que tudo penetra, os pitagóricos partiam de um tom fundamental cósmico para gerar sequências sonoras das quais cada nota é reproduzida de oitava em oitava. Todos os corpos celestes, todas as galáxias, todo o conjunto de sóis, de planetas e de luas têm seu próprio tom, sua própria vibração e cantam em conjunto o maravilhoso hino da criação. Diz-se que Pitágoras, enquanto iniciado nos antigos Mistérios do Egito e da Índia, podia perceber interiormente essa “harmonia das esferas”.

Pitágoras ensinou no Egito
Os ensinamentos pitagóricos relativos à medida e ao número são fundamentados no princípio de Hermes: “Assim como é em cima, assim é embaixo”. Ou seja, a ordem, as leis, as relações subjacentes que regulam a vida do cosmo e do macrocosmo regulam igualmente as do microcosmo, portanto de cada ser humano em particular. Existe harmonia entre o Espírito, a alma e o corpo quando o Espírito, sempre novo e sempre se renovando, ressoa em harmonia com as vibrações e as moções do cosmo que penetra e envolve de todos os lados o campo de vida humano. Quando atravessam a alma, as impressões espirituais da supranatureza provocam emoções e sentimentos que dão à alma o desejo de expressá-los através da poesia, do canto e da dança. Eis porque os pitagóricos comparavam o corpo humano a um instrumento musical, em particular à lira de sete cordas, que, aliás, Pitágoras tocava magistralmente. Quando se volta totalmente para o Espírito, a alma humana põe-se espontaneamente a cantar seu hino sob a poderosa força da inspiração e harmoniza seu instrumento, o corpo, a esse hino. A essência da música, medida e número, ritmo e harmonia equilibram o corpo, os ritmos do coração e da respiração, o estado do sono e do despertar, a absorção e a assimilação dos alimentos, a tensão e o repouso do sistema nervoso bem como dos músculos. A música interior da alma ressoa igualmente nos movimentos graciosos do corpo, no caminhar suave, no semblante jovial e expressivo, na voz que canta, nos olhos brilhantes que refletem tanto as travessuras como as profundezas da alma.

Os pitagóricos atribuíam as doenças e os distúrbios das funções mentais, psíquicas e corporais às relações desarmônicas no interior do complexo sistema vital humano. Acreditava-se que a causa principal da desarmonia era o egocentrismo, o ter os olhos voltados apenas para o próprio interesse e a total surdez à “harmonia das esferas”. O “homem-eu” fecha-se às vibrações provindas do mundo divino que conferem boa saúde, harmonia, força e luz. Essa ruptura faz vibrar na psique falsas notas que acabam suscitando, tanto concreta como figuradamente, dissonância, cacofonia, barulho e tumulto, que causam estados patológicos.

A música como terapia
A música representava um papel importante na terapia preconizada pelos pitagóricos. Eles analisavam, em primeiro lugar, a doença e as tensões desarmônicas por elas causadas. Se o desequilíbrio entre os fatores psíquicos estivesse muito fraco de um lado, e muito forte de outro, eles temperavam pela música as forças dominantes como o instinto, a angústia, o ódio, o ciúme, a autocomiseração e a arrogância, e reforçavam e dinamizavam outras forças como a abnegação, a compaixão e o desejo de harmonia universal, de verdade, de beleza. O princípio dessa terapia evidencia-se do relato em que Pitágoras, ao tocar sua lira, reconduz à razão um homem furioso a ponto de cometer um homicídio. Mediante certas sonoridades, ele evocou na alma em furor desse homem, o entendimento, a calma e o autocontrole. Isso nos faz pensar imediatamente na história bíblica em que Davi apazigua com sua harpa a psique do sombrio e ciumento Saul, que está pronto para matá-lo.

Não sabemos precisamente que tipo de música os pitagóricos usavam e como eles a aplicavam, embora conheçamos alguns dos princípios seguidos por eles, e é muito interessante encontrá-los na terapia pela música praticada em nossos dias. Nos crescentes casos de instabilidade emocional – que são uma conseqüência do tumulto e do estresse da vida social – bons resultados são freqüentemente obtidos nos centros que aplicam esse método. Cientificamente é mesmo possível especificar os efeitos terapêuticos da música de certos compositores. Assim, Mozart aliviaria as dores reumáticas; Schubert auxiliaria na luta contra a insônia e Haendel contra os problemas emocionais; e Bach favoreceria a digestão. Sabe-se que o otorrinolaringologista parisiense Alfred A. Tomatis (1920-2001) obteve bons resultados com as primeiras sinfonias de Mozart nos casos de autismo, de problemas auditivos (como certas formas de surdez e do mal de Meunière, um desequilíbrio que em sua origem no ouvido interno).*

Pesquisas recentes sobre o cérebro mostram que esse órgão necessita fundamentalmente de ritmo. Se o ritmo, diferente para cada um, faltar, surge o desarranjo das funções cerebrais que se manifestam principalmente em forma de estresse. O estresse pode trazer conseqüências funestas para a saúde, e os pacientes que sofrem de estresse profundo teriam primeiro de seguir uma terapia utilizando a bateria. A pessoa que toca bateria busca espontaneamente, poderse-ia dizer, o ritmo que lhe convém, e esse ritmo teria um efeito salutar sobre suas agitação e tensões nervosas. Sessões de bateria freariam, parariam e até mesmo curariam o autismo, a demência e o mal de Alzheimer.

No movimento denominado “New Age”, em que o sentimento e a sensibilidade têm importante papel, o comportamento em relação à música torna-se diferente. A idéia básica é que a psique do homem moderno se parece com fragmentos de uma bomba detonada. O homem condenou-se ao isolamento ao abandonar a ordem natural; ele não apenas rompeu a ligação com seu próprio passado, mas também com sua mãe, a Terra, com o sol, a lua e as estrelas.

Com uma seqüência de sons sutis, muitas vezes sintéticos, compreendendo elementos elaborados com base em antigas músicas litúrgicas ou de civilizações antigas esquecidas, como, por exemplo, a dos celtas, a dos indianos e a dos aborígines da Austrália, tenta-se cobrir o abismo entre a vida danificada, dividida, e o ser mais profundo. Fazendo uso de bacias sonoras tibetanas e cantando tons harmônicos tenta-se evocar forças que ligam magicamente à comunidade mundial que transcende tempo, raça e religião.

A nota cósmica de 442 Hertz
Além da Escola de Mistérios de Pitágoras, nas terapias musicais atuais e no movimento “New Age”, o emprego consciente da música tendo em vista certos resultados (por exemplo, a cura ou desenvolvimento do ser mais profundo), encontra-se somente em pequenos grupos. Em contraposição, na antiga China, a ordem social inteira estava fundamentada e organizada segundo os princípios musicais. Esses princípios correspondem em suas grandes linhas, como é evidente, aos ensinamentos pitagóricos sobre o ritmo, as relações e a harmonia. No apogeu da civilização chinesa, a sociedade não necessitava passar por flagelos tais como a tirania, a exploração, a repressão, as coalizões de interesse e os grupos de pressão. Não, ali eram feitos esforços para organizar a sociedade segundo os princípios cósmicos. A vida terrestre podia ser o reflexo da ordem divina e da harmonia perfeita que reina no cosmo de modo a ser traspassada pelas energias celestes. Assim como os antigos hindus, também os habitantes da antiga China acreditavam que uma sonoridade inaudível, um som original, constituía o próprio fundamento e toda a manifestação do Espírito, da matéria e da energia. Eles denominavam esse som original Huang Chung ou “o som amarelo”. Huang Chung também significava “soberano supremo” ou “vontade divina”. O amarelo era tanto a cor da sabedoria celeste como a do imperador reinante. Esse Huang Chung celeste, inaudível, correspondia a certo som terrestre audível: o Huang Chung terrestre de 442 Hertz. Era ele que ligava a terra ao céu e cuidava para que a vontade divina, por intermédio do soberano do céu e da terra, fosse transmitida aos simples mortais.]

Sabemos que a antiga civilização chinesa era bastante inclinada às cerimônias e conhecia múltiplos rituais. Inúmeras prescrições, regras e leis regulavam a vida social desse imenso império. A música tinha ali um papel importante nos rituais e cerimônias, e toda ela derivava de Huang Chung, a ressonância áurea. Para os antigos chineses a música significava muito mais que um simples divertimento ou a evocação de um ambiente sereno e piedoso. Ela era uma fórmula dinâmica que invocava e vertia a força sagrada do som. Por meio dessa música era possível comunicar à consciência das pessoas as verdades eternas, elevar e manter os habitantes do império em alto nível moral. Num antigo escrito chinês é dito: “Mediante a influência da música os cinco deveres sociais são executados espontaneamente, os olhos e os ouvidos são mais claros, o sangue e a energia vital ficam equilibrados, os prazeres são dominados, os usos e costumes são melhorados, e a paz perfeita reina no império”.

A tonalidade é a medida das coisas
Huang Chung exprimia, principalmente, a ligação entre o céu e a terra por um sistema musical em que a oitava consistia, como no sistema ocidental, de doze notas. Cada uma dessas doze notas estava associada a um signo do zodíaco. E dependendo da hora, do dia e do mês do ano, um determinado tom predominava na música. O caráter dessa música era assim ligado aos movimentos do céu e servia, por assim dizer, de canal de transmissão de energias cósmicas. A idéia de perfeição baseada no Huang Chung ia tão longe que mesmo as instituições do Estado, como, por exemplo, os
ministérios e os serviços administrativos, possuíam sua própria tonalidade e sua própria música cerimonial.

Os pesos e medidas também eram determinados por Huang Chung. O padrão de comprimento era o de uma corda que produzia a ressonância áurea, e o padrão de pesos era o peso de uma barra de metal que, com a dimensão certa, emitia a ressonância áurea. Os protótipos desses pesos e medidas eram conservados no Ministério da Música. Acreditava-se que a música que não fosse baseada no Huang Chung era grosseira e sensual, e caso as advertências das autoridades não fossem suficientes para suprimi-la, ela era interditada em razão de sua influência imoral. Finalmente, a antiga civilização chinesa que havia florescido com a música e mediante ela, também declinou mediante a música; a música chinesa tradicional acabou sendo comprimida na camisa de força das regras e preceitos e sofreu influências estrangeiras, sobretudo ocidentais.

Esse exemplo mostra que se a música pode ser portadora de verdades eternas, suas formas estão sujeitas à mudança. Ela sempre busca novas formas de expressão que se adaptam ao psiquismo do gênero humano em evolução. E mesmo que certas expressões musicais tenham florescido por longo tempo, cedo ou tarde elas envelhecem e são postas de lado.

Na sabedoria dos Mistérios é falado sobre a força oculta e secreta da música. Algo dessa sabedoria pode ser encontrado no mito de Orfeu e Eurídice (ver Pentagrama 3, 2007). Esse mito grego, explicado de diversas maneiras, e a justo título chamado de “drama do amor impossível”, inspirou numerosos compositores (por exemplo, Monteverdi, Gluck, Offenbach). E não é à toa: a música sempre foi a forma artística mais apta a expressar o amor divino. Assim como o Espírito, a música é volátil e intangível. Assim como o Espírito, ela não tem passado nem futuro, mas vive e atua diretamente no “agora”. E, do mesmo modo que em um toque espiritual, na música podem saltar centelhas do fogo divino.

*Tomatis, Alfred A. L’oreille et la vie (O ouvido e a vida). Paris: Laffont, 1990.

FONTE: Revista Pentagrama

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